Colóquio de Luís Miguel Cintra no Colégio Campo de Flores

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Quinta-feira, dia 29 de outubro, 14h30

Público: alunos do secundário e respetivos professores

Com a presença do ator Guilherme Gomes (Príncipe Hamlet)
Em 1973, Luís Miguel Cintra fundou com o encenador Jorge Silva Melo a Companhia de Teatro da Cornucópia. Esta companhia de teatro ocupou, até ao dia de hoje, um lugar incontornável na vida cultural do nosso país e alimentou o imaginário de muitas gerações.

Ao longo destes mais de 40 anos, Luís Miguel Cintra encenou os mais importantes dramaturgos, de Moliére a Shakespeare, de Brecht a Karl Valentin, de Séneca a Garcia Lorca, de Pirandello a António José da Silva, de Dario Fo a Gorki, de Pasolini a Raul Brandão, de Gil Vicente a Strindberg.

De facto, a lista é interminável. Juntam-se-lhe os poetas cujos poemas Luís Miguel Cintra foi dizendo, com a sua voz inconfundível: de Sophia de Mello Breyner Andresen a Fernando Pessoa, de Luís de Camões a Antero de Quental.

Luís Miguel Cintra foi também crítico de teatro e professor em prestigiadas escolas de teatro e cinema nas áreas da interpretação e da direção de atores.

Luís Miguel Cintra colaborou também com inúmeras outras companhias de teatro tanto em Portugal como no estrangeiro.

Como ator de cinema, Luís Miguel Cintra construiu, ao longo destes anos todos, uma imagem e um estatuto ímpares. A lista de realizadores com que trabalhou é também infindável, e nela estão incluídos os mais famosos realizadores portugueses e estrangeiros. Sobressaem, naturalmente, os nomes de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, Luís Filipe Rocha, Maria de Medeiros, Paulo Rocha, assim como Solveig Nordlund e John Malkovich.

Foi esta autêntica lenda viva do teatro e do cinema que esteve no Colégio Campo de Flores, quinta-feira, dia 29 de outubro, à tarde, para conversar com os nossos alunos e professores do secundário a propósito do seu último trabalho como encenador e ator: a mais famosa peça de William Shakespeare, Hamlet.

Neste colóquio, que aconteceu no auditório do Colégio, esteve também presente o jovem ator Guilherme Gomes que interpreta a personagem do príncipe Hamlet.

Aliás, Luís Miguel Cintra começou por realçar a enorme complexidade deste papel que, por isso mesmo, costuma ser confiado a um ator mais velho e experiente que, à posteriori, tem de ser caracterizado para parecer mais novo.

Para quem já viu a peça, e muitos dos jovens presentes na sala já o haviam experienciado, é um assombro o desempenho de Guilherme Gomes. Tendo apenas 22 anos, este jovem, que iniciou a sua carreira na poesia, é já um valor seguro na arte da representação e, com certeza, ouviremos falar dele no futuro muitas vezes.

Luís Miguel Cintra explicou à assistência, que encheu por completo o auditório do Campo de Flores, que a participação do jovem Guilherme Gomes nesta peça permitiu recuperar a verdadeira natureza política de Hamlet.

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O encenador confessou ao público jovem presente que esta encenação de Hamlet lhe tinha permitido tomar as dores desta geração de jovens cada vez mais afastada da vida política, porque não encontram nela nada com que se identifiquem e, perigosamente, estão a ser espoliados de direitos fundamentais como o direito ao trabalho e ao trabalho dignamente remunerado.

Luís Miguel Cintra afirmou: em Elsenor, Hamlet também está a ser espoliado do seu reino, do qual é o legítimo herdeiro, com a conivência e a indiferença generalizadas.

Daí partiu para a caracterização do que tem sido o perfil do trabalho da Companhia de Teatro da Cornucópia.

O encenador identificou-se com a cultura política de contra-corrente, da recusa de concessões às modas e aos gostos mais comerciais.

Luís Miguel Cintra escalpelizou o perfil dos atores que se deixam seduzir pelo brilho da ribalta que a televisão e as novelas concedem depressa demais e comparou-o ao dos atores que professam o teatro comprometido com a verdade.

Guilherme Gomes também falou, essencialmente para expressar a sua gratidão pela oportunidade de desempenhar um papel de tamanha magnitude e de aprender com profissionais tão extraordinários.

O encenador passou então a explicar as linhas de força da peça. O tema de Hamlet é a Ação. O príncipe Hamlet, ao ter a revelação (fantasmagórica) do assassinato de seu pai, o poderoso rei Hamlet, pelo seu próprio irmão (Cláudio, tio do príncipe), fica devastado. De igual modo, ao aperceber-se do que significa a sua mãe estar já casada com esse hediondo assassino, Hamlet fica sem referências algumas.

Toda a ação é um verdadeiro percurso filosófico em busca das razões para agir corretamente. É, também, uma demonstração lógica que procura as provas da verdade, pois de uma aparição que pode ser apenas ilusão (a revelação feita pelo fantasma do rei Hamlet), o príncipe Hamlet tem de chegar à certeza da culpabilidade do tio.

O momento crucial da explicação dada pelo encenador chegou quando referiu o monólogo sacramental de “ser ou não ser, é isto a questão”.

Quase toda a gente conhece esta primeira parte do monólogo, mas raros são os que percebem a profundidade do problema radical com que se defronta o príncipe Hamlet.

Os esclarecimentos de Luís Miguel Cintra foram, com toda a certeza, uma grande ajuda não só para os que já tinham visto a peça mas também para aqueles que a irão ver ao longo dos próximos fins de semana.

São três e não duas as possibilidades do dilema de Hamlet. Todas teriam consequências trágicas, pois de uma tragédia se trata, mas Hamlet opta por agir, para resgatar a honra do seu pai, recuperar o reino que é seu por direito e libertar a sua mãe de tão hedionda falta.

As outras opções são: não agir, não fazer nada, ser cobarde, não fazer ondas, que é o mais fácil (primeira possibilidade); a terceira possibilidade surge como o fascínio do descanso eterno, o suicídio, a fuga radical que Hamlet rejeita pela ponderação do que poderá estar à espera no desconhecido.

Seguiu-se o período em que a jovem assistência começou a colocar questões.

Questionado acerca do significado da cadelinha Hécuba, que acompanha o Pierrot, Luís Miguel Cintra explicou que foi algo que acrescentou à peça para deliciar o público com a mestria da atriz Rita Cabaço. De facto, é um momento mágico que nos apazigua a alma que já adivinha o trágico desfecho. Também a personagem Pierrot foi acrescentada pelo encenador, equivalendo ao coro clássico da tragédia.

Questionado acerca do significado da personagem Ofélia, o encenador explicou que ela simboliza a pureza. É a inocência perdida de Hamlet.

Questionado acerca da passagem final, da estranha dança de Fortimbras, Luís Miguel Cintra explicou que ela pretende significar que o rei estrangeiro, aparentemente justo e apaziguador, inevitavelmente será, como sempre, mais um usurpador.

Não é possível neste artigo esgotar todos os esclarecimentos dados por tão brilhante astro da vida cultural, mas já foi dito aqui o essencial.

O Doutor João Rafael de Almeida, que, na qualidade de anfitrião, enaltecera, no começo do colóquio, o momento privilegiado que iríamos viver, deu por encerrada a sessão com bastos e sinceros agradecimentos a Luís Miguel Cintra e Guilherme Gomes e reforçou o desafio de irmos todos assistir à peça mais representada de sempre em todo o mundo, em cena até 15 de novembro no Teatro Municipal Joaquim Benite em Almada.

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