Testemunho sobre a II Guerra Mundial

No âmbito do estudo da obra Noite de Elie Wiesel, fui convidado pela Prof. Sónia Pisco a partilhar com a turma do 10ºB a experiência vivida pela minha família durante a II Guerra Mundial, nomeadamente a perseguição de que os judeus foram alvo pelo regime nazi do III Reich.

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Não obstante tudo o que este momento absurdo da história universal tem de aterrador, repugnante e reprovável, associo, também, momentos de fortuna e de superação, já que, por incrível que pareça, não tenho conhecimento que algum Draiblate (Dreiblatt na forma original) tenha sucumbido às mãos do regime de Hitler. Pelo contrário, entre a vinda dos meus avós paternos para Portugal nos finais de 1938, assim como de outros familiares para outras partes do Mundo, à descoberta de um membro da família Dreiblatt na lista de Schindler e acabando com a improvável fuga do meu tio-avô de um campo de concentração, todos estes factos apurados apontam para que a Família Dreiblatt tenha tido uma sorte diferente de outros seis milhões de judeus.

A Família Dreiblatt teve origem em Cracóvia, na Polónia, há mais de duzentos anos. Antes do final do século XIX, os meus bisavôs foram viver para Hamburgo, na Alemanha.

Nessa altura, a comunidade judaica ainda não era perseguida ou mesmo excluída pelo regime político vigente na Alemanha. Inclusivamente, tenho conhecimento que houve alguém da minha família que morreu, durante a I Guerra Mundial em combate, como militar alemão.

Com a ascensão do Nacional Socialismo na Alemanha, e após a subida ao poder de Adolf Hitler em 1933, a perseguição aos judeus tornou-se asfixiante, tendo atingido um dos seus episódios mais marcantes na noite de 9 de novembro de 1938, conhecida como Krystalnacht  (Noite dos Vidros Partidos).  As tropas das SS, vestidas à civil, atacaram de forma organizada na Alemanha e na Áustria as várias comunidades judaicas espalhadas pelos dois países. Como consequência da violência dessa noite, morreram perto de cem judeus, foram aprisionadas e enviadas para campos de concentração entre vinte e cinco a trinta mil pessoas, destruídas centenas de sinagogas, lojas, casas…

Muito provavelmente terá sido este a razão pela qual os meus avós decidiram sair da Alemanha. O passaporte foi emitido a 21 de novembro, o visto do consulado de Portugal tem a data de 8 de dezembro e a data de saída da Alemanha (por barco, presumo um cruzeiro) está registada com 10 de dezembro. Tudo parece que foi devidamente organizado e preparado para que, em apenas trinta dias, se tenha conseguido sair de forma legal (passaporte, vistos, carimbos) de um regime tão hostil. O custo dos vistos portugueses foi de quase 200$00 (o que era uma importância muito elevada para o nível de vida dos portugueses na altura) e acredito que outros pagamentos tenham sido feitos para possibilitar a fuga.

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Em relação ao meu familiar que consta da lista de Schindler, apenas reforça a origem da minha família, já que Oskar Schindler tinha a sua fábrica de esmaltes precisamente em Cracóvia.

Quanto aos meus tios-avôs, ambos fizeram parte de uma fuga coletiva de um campo de concentração. Viveram, após a evasão, vários anos em Lima, no Perú, mas vieram viver os seus últimos anos em Lisboa. Lembro-me de ver os números de prisioneiros gravados nos seus braços, assim como registei o lema de vida que me passaram quando era pequeno: Vouloir c’est Pouvoir!

Apenas consegui apurar boa parte destes factos recentemente. Infelizmente, perdi o meu pai e avós quando era muito novo, logo não pude testemunhar, e sobretudo entender, de viva voz, as dificuldades, o sofrimento, as privações, a agonia pelas quais passaram. Ainda que tenham sobrevivido, a herança-fantasma desse período negro marcou-lhes o resto da vida.

As memórias da perseguição de que foram alvo originaram outro tipo de consequências. A família da minha mãe receava que ela se tornasse judia ao casar-se com o meu pai. Afinal, e embora gostassem muito dele, tinham passado apenas doze a quinze anos do Holocausto. Passados mais alguns anos, já durante os anos 70, a minha mãe aconselhava-me a não divulgar a minha religião (não no sentido de não a querer assumir, mas porque o sofrimento pelo qual a família tinha passado, continuava muito presente).

Ainda hoje, embora haja uma maior liberdade religiosa, as perseguições e ataques a comunidades judaicas (sobretudo na Europa) mantêm-se e não há mostras de puderem ser eliminadas. Nem essas, nem tantas outras questões que não parecem ter solução no panorama mundial. Interesses obscuros e cobardes que se escondem por trás da política internacional, associados à obsessão pelo poder, conduzem a Humanidade por caminhos perigosos.

Houvesse respeito pelos outros e todos poderiam assumir a sua cultura, a sua vontade, as suas diferenças…

Vouloir c’est Pouvoir!